Por Danilo Caruso
1
– Na disputa de interpretações sobre o que está ocorrendo no
país atualmente, a direita política apresenta duas vantagens em
relação à nós: I) ela dispõe de meios poderosos para difundir
sua própria visão de mundo; e II) em geral, as narrativas mais
simples e diretas costumam ser mais facilmente incorporadas pelas
massas, mesmo quando não são as mais objetivas e corretas. Esse
segundo fator favorece a direita porque ela não está interessada em
traduzir às massas o que realmente está acontecendo. A esquerda,
por outro lado, precisa difundir uma mensagem mais complexa, porque
seu objetivo é justamente o de conscientizar as massas da
complexidade do mundo real (o que é um processo muito mais lento
e difícil). Para ajudar na batalha de ideias, propomos um primeiro
passo: descontruir as narrativas dominantes, apontando para as massas
o quanto elas são simplistas.
2
– Dentre as diversas narrativas em disputa, a dominante – que
conforma o chamado “senso-comum” – é aquela formulada e
defendida por setores muito poderosos da sociedade, que apresentam um
discurso bastante homogêneo: a mídia; grande parte do
Judiciário (incluindo ministros do STF, como Gilmar Mendes, e
juízes como Sérgio Moro); além de toda a oposição de direita
ao governo no Congresso (PSDB, PSD, etc, além do PMDB, em vias de
deixar a base aliada do governo Dilma). Chamaremos essa versão de
NARRATIVA 1. Ela é muito simples, de rápida e imediata compreensão,
sem espaço para contradições. Basicamente, diz o seguinte: o que
está acontecendo no país é simplesmente um “caso de polícia”.
Há “bandidos” de um lado, sendo perseguidos por “mocinhos”
de outro. Tudo não passa de uma questão de corrupção, que nada
tem a ver com o sistema político-econômico do país (que raramente
é mencionado), mas com a conduta particular de alguns políticos e
partidos. Tudo se resume a um “pega-ladrão”, e não há mais
NADA envolvido: nenhuma disputa de poder; nenhum uso ilegítimo da
lei; nenhum interesse por trás da derrubada do governo Dilma. É uma
questão de polícia (ou de “justiça”) e nada mais.
3
– Não admira que essa seja a versão dominante até o momento –
isto é, a que a maioria das pessoas concorda. Além da força dos
meios de comunicação, a narrativa em si é muito sedutora, porque
não demanda maior esforço de interpretação e transforma tudo numa
questão moral: trata-se de uma luta do “bem” contra o “mal”,
da “lei” contra os “fora-da-lei”. Ela simula a mesma
narrativa que encontramos nos filmes-pipoca de Hollywood, ou nas
novelas, onde os “mocinhos” e os “bandidos” são muito bem
apresentados e demarcados, bastando apenas torcer pelos “mocinhos”.
É muito fácil simplesmente aderir a essa lógica, e esse é o
caminho que inegavelmente é tomado pela maioria das pessoas. Assim,
o PT, Lula e Dilma se tornam a encarnação do mal, de todos os
vícios, de todas as mazelas do país.
4
– Obviamente, o governo Dilma e o PT (os “bandidos” da
narrativa dominante) têm sua própria versão dos fatos, e também
seus próprios e poderosos meios para difundi-la – tais como blogs,
sites, movimentos sociais e sindicatos atrelados ao governo, o
controle de certos aparelhos do Estado; etc. Na versão do governo –
que chamaremos de NARRATIVA 2 – o que está acontecendo é uma
disputa na qual a direita, representando os interesses dos poderosos
ou “dos ricos”, tenta derrubar do poder o Partido dos
Trabalhadores e seu principal líder, Lula – que representaria os
interesses “dos mais pobres”. A questão do “combate à
corrupção”, na versão do governo, aparece como uma desculpa que
a direita utiliza para acabar com as conquistas sociais ocorridas nos
últimos anos, fruto das políticas implementadas por Lula e Dilma.
Ou seja: sai o conflito de “mocinhos contra bandidos” e entra o
conflito entre “ricos contra pobres”.
5
– Embora mais sofisticada do que a versão do senso-comum, a
NARRATIVA 2 também apresenta inúmeras incoerências. Não explica,
por exemplo, que o governo do PT manteve a defesa incondicional dos
interesses dos grupos dominantes, que portanto não teriam motivos
para querer tirá-los do poder. Mesmo as políticas populares
adotadas nos últimos anos também interessavam aos setores do
capital, pois, em sua maioria, eram funcionais aos seus interesses
políticos e/ou econômicos.1
Não podemos esquecer que o vice de Lula em 2002 era um empresário
(José de Alencar), e o de Dilma um representante típico da direita
brasileira (Michel Temer). Além disso, os grandes grupos econômicos
financiaram as campanhas de todos os grandes partidos, inclusive
do PT. Por fim, a Lava-Jato vem demonstrando que membros do PT
eram muito próximos (amigos, inclusive) de representantes dos
grandes grupos econômicos. Portanto, não se trata de uma questão
de “trabalhadores x capital”, porque o governo PT também
representou, todos esses anos, interesses do capital.
6
– Deve-se ressaltar também que a versão do governo peca por não
reconhecer que, de fato, o partido se utilizou dos mesmos esquemas de
corrupção que historicamente são praticados pela direita
brasileira. Ao se adequar às ditas “regras do jogo”, o PT passou
a naturalizar práticas como caixa 2, pagamento de propinas, etc. De
nada adianta afirmar que “a direita também rouba”, como a maior
parte da militância governista tem feito nos últimos anos (seja em
debates políticos ou em blogs e sites governistas), porque o que
interessa é justamente o combate à CORRUPÇÃO SISTÊMICA do Estado
brasileiro, e não que se reproduzam essas práticas. Ao jogar o jogo
da corrupção, o PT apenas demonstrou que se esgotou como partido
realmente capaz de realmente transformar as formas de funcionamento
do Estado brasileiro.
7
– Precisamos apontar para as massas que, à medida que a crise se
arrasta, vem tomando forma no país uma nova versão dos fatos
(NARRATIVA 3), que é formulada por setores difusos, que acompanham
os acontecimentos e percebem que tanto a narrativa da mídia quanto a
narrativa do governo, por mais que apresentem alguns pontos de
verdade, escondem muito mais do que revelam o que
realmente está acontecendo no país. O PSOL não pode se considerar
“dono” dessa terceira narrativa, que está sendo socialmente
construída; mas certamente é parte importantíssima nesse
esforço, juntamente com movimentos sociais independentes, outros
partidos de esquerda não atrelados ao governo e elementos nos meios
artístico e intelectual (além de um amplo e disperso setor não
organizado na sociedade).
8
– Portanto a sociedade apresenta três setores politicamente
definidos: um setor 1 (que podemos chamar de “os verde-amarelos”),
que está em crescimento, e é relativamente organizado pela
mídia, pelos novos “movimentos sociais” de direita e pelos
partidos pró-impeachment; um setor 2 que está em decomposição,
e é organizado pelo governismo; e um setor 3, que oscila entre o
governismo e uma posição mais independente, que não está
organizado por ninguém. Essa divisão (entre os setores 1, 2 e 3) se
refere às parcelas politicamente mais engajadas da sociedade,
especialmente em relação à crise política atual; mas não resumem
o conjunto da população. As grandes massas distribuídas nas
classes D e E ainda assistem relativamente “de fora” as disputas
políticas em torno do impeachment.
9
– É nosso objetivo estratégico conquistar os “corações
e mentes” inclusive das pessoas que comungam das narrativas da
direita e do governismo, conquistando a maioria da população; mas é
um erro supor que, no momento, estejamos em condição de atingir
esse objetivo, pela simples razão objetiva de que os setores 1 e 2
da sociedade não estão abertos ao diálogo conosco. Em termos
táticos, nosso foco deve ser o de disputar o setor
3, que identifica (corretamente) o impeachment como um golpe e
um retrocesso para nossas imperfeitas instituições democráticas.2
Portanto, é tão importante nos diferenciarmos do PT quanto, perante
o setor 3 – que é o único realmente em disputa para nós –
nos diferenciarmos também dos setores golpistas.
10
– Sabemos que, para o setor 1, nós já somos identificados
como parte do petismo. Isso dificilmente mudará no curto
prazo, dada a visão de mundo simplista desse setor, que simplesmente
divide a sociedade entre os “do bem” (isto é, eles próprios) e
os “do mal” (todos os outros). Se nos abstivermos de lutar contra
o golpe da direita, estaremos abrindo caminho para que o governismo
conquiste o único setor da sociedade (o setor 3) que é permeável
ao nosso discurso e ao nosso projeto. Além disso, é fundamental
entender que o impeachment, por mais que seja funcional à derrota do
governismo, também significará não só o encerramento das
investigações contra a corrupção, como também uma ascensão
festiva e de maior fôlego do conservadorismo e da direita
organizada, unificada em suas frações pela conquista de maiores
parcelas de poder dentro e fora do aparato de Estado.3
Portanto, a vitória do setor 1 tem um sentido negativo geral para
todos os trabalhadores, e não significará uma abertura para o
crescimento de nosso projeto.
11
– Se quisermos ampliar as bases sociais do PSOL, precisamos nos
apresentar como parte do esforço coletivo da parcela mais crítica
da sociedade. No entanto, precisamos ter consciência de que essa
parcela é multifacetada: ali se incluem desde ex-militantes ou
eleitores desiludidos do PT, como também pessoas que depositam ou
depositaram suas esperanças (de forma mais ou menos ingênua), em
“novas caras” da velha política – como Marina Silva e a Rede,
por exemplo. Dialogar com esse setor é mais factível do que com o
setor 1; não dialogar com ninguém, esperando oportunisticamente que
a direita (e não a esquerda) derrote o governismo significa tão
somente isolar-se cada vez mais, enfraquecendo-se diante da
ofensiva de direita que nos espera.
12
– Obviamente, teve ser também um objetivo prioritário a inserção
nas lutas do setor 4. Dificilmente conseguiremos disputar essa fração
dos trabalhadores tentando mobilizá-las em torno da questão do
impeachment, porque ali o crescimento do PSOL só poderá se dar
através de um longo e persistente trabalho de base, focado nas
questões sociais mais urgentes e imediatas, conciliadas com um
trabalho paulatino de organização e politização.
CONTRIBUIÇÃO
À ANÁLISE DAS CAUSAS DA CRISE
POLÍTICA
1
– A direita não está contra o governo porque o PT represente as
classes trabalhadoras. O que ocorre é que os setores do capital não
acreditam mais na manutenção estável da dominação pela via
lulista da conciliação de classes, que só “funcionou”
em uma situação de crescimento econômico calcado na exportação
de commodities.4
Já em 2013 esse modelo demonstrou sua falência, isto é, sua
incapacidade de manter a passividade dos trabalhadores.5
A crise econômica (que trataremos adiante) torna ainda mais
improvável a manutenção do modelo, uma vez que ela impõe a perda
de ganhos dos trabalhadores para manter os lucros da elite, impedindo
a conciliação de classes que caracteriza o lulismo. Do ponto
de vista dos grupos dominantes, a pergunta é: se em 2013, quando
havia uma situação de pleno emprego e inflação controlada, os
trabalhadores já se rebelaram nas ruas e o país batia seu recorde
histórico de greves (com 2.050 greves ao todo), como será possível
contê-los daqui para frente, ante um cenário de crescimento do
desemprego e da inflação, conciliado às contradições que já
existem no modelo? A resposta é: uma dominação menos pactuada e
mais autoritária, no campo político, conciliada com a perda de
direitos e com o avanço de uma acumulação ainda mais predatória,
no campo econômico e social.
2
– Há também uma oposição da direita às poucas conquistas
obtidas pelos trabalhadores durante o lulismo – a maioria
delas pela via do consumo, mas não todas (já que também houve
algum avanço, por exemplo, na pauta do combate ao racismo, com as
cotas, e de defesa da mulher, com a Lei Maria da Penha). Mas, como
vimos anteriormente (nota 1), quase todas essas conquistas foram
funcionais aos interesses dos grupos dominantes. Na verdade, a
oposição aos programas sociais do PT não vem tanto da burguesia
dominante, mas principalmente da classe média – já que ela não
se beneficiou desses programas e, por causa deles, perdeu certos
privilégios concretos e simbólicos que anteriormente detinha
perante as classes baixas. No momento, esse rancor da classe média e
da pequena burguesia em geral está sendo utilizado pela direita com
o propósito de articular uma forma mais violenta e espoliadora de
dominação.
3
– Há ainda um terceiro componente: as chamadas “pedaladas
fiscais” representaram, na realidade, decretos de execução
orçamentária do governo que alongaram por alguns meses o prazo para
cumprir o superávit primário (que vem sendo aplicado
religiosamente pelo PT desde o primeiro mandato de Lula). Para a
fração financeira da burguesia, essa medida expôs a fragilidade do
governo em manter o compromisso com a macroeconomia neoliberal
(expresso na “Carta aos Brasileiros”) e, ao mesmo tempo, as
políticas sociais que lhe garantem apoio popular.
4
– Outra questão é que há uma oposição de setores associados ao
capital imperialista estadunidense em relação à alguns aspectos da
política externa. Embora a abertura de mercados externos agrade às
frações dominantes da burguesia nacional, há oposições em
relação à conformação de um novo bloco econômico (os BRICS),
que começa a apresentar algumas instituições próprias.
5
– O rompimento com o lulismo em favor de um novo
modelo de dominação mais autoritário foi facilitado pela
capitulação do PT em 2013. Ao se retirar das ruas e reprimir a
mobilização popular, o PT abriu o caminho para a direita e perdeu
grande parte de seus referenciais de identificação com a esquerda.6
Em consequência, veio a derrota trágica das forças progressistas
no primeiro turno de 2014 (que resultou num Congresso francamente à
direita) que, juntamente com a crise econômica, criou as condições
objetivas (ainda que formalmente ilegais) para o impeachment.
6
– Diante desta situação, o que fez o governo Dilma? Buscou
responder às exigências dos grupos dominantes, visando a manutenção
do partido no poder.7
Como? Em primeiro lugar, o governo tornou-se francamente mais
autoritário do que já era. Isso já se verifica em 2013, quando se
permitiu a repressão desmedida aos protestos; cresceu e se
sofisticou em 2014 (com um aparato repressivo mais moderno, além da
integração das forças policiais); e se consolidou definitivamente
em 2015, com o advento da Lei Antiterrorismo.8
Paralelamente, o governo também cedeu à direita em praticamente
todas as áreas: direitos dos trabalhadores; direitos humanos;
abertura de ministérios a setores francamente reacionários (Kátia
Abreu, Joaquim Levy, Marcelo Castro, etc9);
modificação de legislações ambientais; interrupção da Reforma
Agrária; etc. Ou seja, o PT buscou demonstrar que estava disposto a
"fazer o que fosse necessário", tentando com isso manter o
beneplácito dos grupos dominantes a que estava aliado.
7
– No momento, o PT também procura apresentar Lula e a força dos
movimentos controlados pelo partido ou aliados (especialmente a CUT,
mas também o MST, a UNE, a CTB e a UJS) não para ameaçar os grupos
dominantes, mas para mostrar a eles que o partido pode sim manter
a passividade das massas. Neste sentido, o governismo recupera o
discurso de conciliação e harmonização nacional – retomando
explicitamente a chave do “Lulinha Paz e Amor” – sem nenhum
chamado para o enfrentamento. Ao mesmo tempo, o governo mantém o
autoritarismo contra todos os movimentos não cooptados pelo governo.
8
– A possibilidade dialética do aumento do autoritarismo de
Estado gerar uma revolta popular de largas proporções pode fazer
com que, no final das contas, parte dos setores dominantes opte por
manter um modelo mais pactuado – e, neste caso, até mesmo Lula
pode vir a ser tolerado, a depender dos acordo que estiver disposto a
fazer (já que dificilmente outro nome seria capaz de apaziguar as
massas e costurar uma nova rodada de conciliação de classes). Nunca
é demais lembrar que, nos momentos críticos de 2013 (antes que a
direita e a mídia conseguissem maior êxito em pautar as
manifestações e expulsar a esquerda das ruas), setores do meio
empresarial iniciaram nos bastidores do poder a ideia do “Volta
Lula”. Porém, a tentativa de um novo acordão para a resolução
da crise pela via da conciliação de classes teria que se dar em um
cenário econômico muito mais difícil.
9
– A essa altura, porém, o quadro é muito distinto. A direita está
muito forte nas ruas, graças a um crescimento enorme no campo
cultural – para o qual contribuiu a ascensão do fundamentalismo
religioso (cortejado pelo próprio PT em todos esses anos) e o
surgimento de novos “movimentos sociais” financiados pelo capital
(inclusive estrangeiro) e artificialmente inflados pela mídia. Para
isso, conspirou também o total abandono do PT da disputa de
visões-de-mundo no campo cultural, seja nas políticas educacionais,
no debate político em geral e/ou em função da não democratização
da mídia. Vale lembrar ainda que toda conquista social que não é
resultado de luta despolitiza. Simplesmente dar dinheiro aos pobres é
despolitizador, porque quando há luta de fato, mais ou menos
organizada, o governo responde com violência.
10
– Contudo, em termos eleitorais, há uma carência de nomes na
direita orgânica com capacidade de vencer Lula em 2018.10
Neste quadro, setores mais radicais apostam no tudo ou nada,
capitaneados inicialmente pelo PSDB e pela mídia e depois também
por partidos da base do governo. Há também os setores ainda mais
reacionários, oriundos das classes médias, como os movimentos e
líderes proto-fascistas (muitos dos quais estiveram ao lado do
governo até um passado recente, como Bolsonaro), que ameaçam sair
do controle. Por fim, existem também os setores do “baixo clero”
do meio político, que estão dispostos a fazer qualquer coisa para
não serem tragados na onda das investigações dos casos de
corrupção.11
Para esse conjunto de setores, é hora de se livrar definitivamente
do PT e implantar logo formas ainda mais autoritárias de Estado,
capazes de promover um “salto” na acumulação de capital à
custa dos trabalhadores e da soberania nacional (seja na expropriação
de direitos, bens da natureza, privatização de bancos públicos,
contra-reformas na previdência, novos modelos de exploração do
petróleo, etc). Daí a aposta no golpismo explícito, que se daria
pela via do Judiciário conciliado à proposta do impeachment.12
10
– Caso sobreviva ao impeachment, o governo terá ainda algumas
cartas na manga, que podem reverter a situação: as reservas
internacionais não foram utilizadas até o momento; Lula pode
continuar fortalecendo o partido e o governo; e, por fim, uma
eventual retomada do crescimento econômico mundial – especialmente
através da China ou da Índia – pode reaquecer a economia e
garantir a sobrevida (sempre permeada de contradições) do modelo.
11
– Há também a possibilidade da crise ser aparentemente
“resolvida” através de novas eleições. Essa proposta é
defendida, por um lado, por setores de centro-direita que também
apostam na via da conciliação de classes, mas nesse caso
capitaneada por Marina; e por outro, por um setor minoritário da
esquerda classista, que apostam na bandeira do “Fora todos”.
A
NOVA AGENDA DE CONTRA-REFORMAS (O QUE VEM POR AÍ...)
1
– Para entender o que está ocorrendo no Brasil de hoje, não
podemos nos dar ao luxo de nos limitarmos aos fatos mais
imediatamente perceptíveis (e óbvios) da conjuntura atual – isto
é, a crise do governo Dilma. Precisamos inserir esse momento num
contexto maior que o explica e condiciona. A crise do governo Dilma é
uma manifestação de problemas muito maiores e mais
complexos, e o desafio mais imediato e importante é o de contribuir
para que as massas trabalhadoras eduquem-se politicamente o mais
rápido possível, organizando-se, de modo a perceber a complexidade
do momento atual e se preparar para enfrenta-lo.
2
– O primeiro ponto é reconhecer que O SISTEMA CAPITALISTA ESTÁ EM
DECLÍNIO. Essa frase não deve ser entendida em termos puramente
econômicos; em tese, não há nada na “economia pura” que
indique que o sistema não possa mais se reproduzir – e a própria
realidade objetiva demonstra isso: o capitalismo pode e
continua se reproduzindo, em velocidade e escala cada vez
maiores. A questão é que, cada vez mais claramente, o funcionamento
do capitalismo se revela incompatível com a manutenção de um
equilíbrio socioambiental mínimo, que impeça um colapso de largas
proporções. Neste sentido, há duas incompatibilidades
fundamentais:
-
a manutenção de condições ambientais capazes de garantir a reprodução da humanidade, tal como conhecemos;
-
e a manutenção de conquistas sociais e democráticas mínimas, que no passado (época ainda de ascensão do capitalismo), puderam ser apresentadas como conquistas civilizatórias da era capitalista, e que de certa forma limitavam os aspectos mais bárbaros do sistema.
3
– Em outras palavras, o capitalismo revela-se cada vez mais
incompatível com (A) o estabelecimento de um necessário equilíbrio
sócio-ambiental no planeta; e (B) cada vez mais incompatível com a
manutenção da democracia (mesmo a precária democracia
representativo-parlamentar).
4
– Isso significa que estamos caminhando, em todo o mundo, para um
DECLÍNIO DA DEMOCRACIA e o estabelecimento de uma espécie de ESTADO
DE EXCEÇÃO PERMANENTE. É claro que essa transformação se
manifesta de maneira muito diferente de país para país, e também
de forma desigual no interior de cada país. Mas o movimento é
geral: não há nenhuma parte em que a humanidade esteja ampliando
seus direitos democráticos; ao contrário: eles estão
regredindo no mundo inteiro. Isso se percebe claramente no
Brasil, através da criminalização dos movimentos sociais e do
direito ao protesto e com a militarização crescente do
território – inicialmente nas áreas periféricas e nas fronteiras
agrícolas, mas gradualmente atingindo também outros espaços que,
antes, encontravam-se relativamente “protegidos” em relação à
brutalidade do Estado (como os grandes centros, as escolas primárias,
as universidades, etc).
5
– O crescimento do FUNDAMENTALISMO RELIGIOSO E ECONÔMICO faz parte
desse quadro geral. Ele aponta não só a falência gradativa das
instituições da democracia burguesa, como também se articula com
ela, visando cancelar os direitos duramente conquistados pelos
trabalhadores desde o fim da última ditadura empresarial-militar.
6
– Isso significa que vem por aí uma nova ditadura aberta, aos
moldes do regime implantado em 1964? Seria um enorme erro descartar a
priori essa possibilidade, como se professássemos algum tipo de
“fé inocente” nas nossas instituições republicanas (que nunca
mereceram esse crédito); mas, dado o nível de militarização dos
espaços e dos aparelhos de Estado que já existe, o mais
provável é que não seja necessário romper com a
formalidade aparentemente democrática do país, e assim mesmo
implantar os níveis assustadores de autoritarismo que o sistema
capitalista atual demanda.
7
– Uma das frentes fundamentais de avanço do Estado de Exceção
Permanente se dá na EXPROPRIAÇÃO DE DIREITOS SOCIAIS em
geral, visando a implantação de formas muito mais selvagens de
exploração do trabalho. Os alvos principais são os direitos
trabalhistas; a previdência social; as políticas sociais mínimas
(como o Bolsa Família); e o acesso universal à Educação e Saúde
enquanto serviços públicos. Mas há também o cerceamento do
direito de ir-e-vir, por exemplo (com o isolamento de áreas
privilegiadas nas cidades, às quais os marginalizados tem o acesso
cada vez mais restringido); e, no caso de certas populações
específicas – como as populações indígenas, quilombolas, os
moradores de periferias militarizadas, os sem-terra, etc – tem-se
ainda o cerceamento do direito à própria vida.
8
– Os ataques aos direitos das minorias e das mulheres também se
inserem nesse quadro, na medida em que os grupos que o articulam se
compatibilizam com o estabelecimento de uma nova ordem ainda mais
autoritária. Além disso, o próprio desenvolvimento capitalista no
Brasil sempre se traduziu na reprodução de uma sociedade machista,
racista e heteronormativa.
9
– Outra frente fundamental de avanço do Estado de Exceção
Permanente é a DERRUBADA DE LEGISLAÇÕES AMBIENTAIS que impunham
limites à completa degradação do país, o que compromete as
condições de sobrevivência das futuras gerações. Nesta seara se
inserem os ataques às leis de proteção florestal, o novo código
de mineração, as normas sobre o uso das águas, etc. Como veremos
adiante, a questão é que essas legislações estão em contradição
com o modelo econômico que sustenta nossas exportações e que
define nossa inserção dependente no sistema capitalista mundial.
10
– Finalmente, há também a EXPROPRIAÇÃO DOS DIREITOS POLÍTICOS,
que são justamente aqueles que poderão servir para que os
trabalhadores resistam ao avanço do autoritarismo de Estado. Assim,
assiste-se o ataque ao direito de organização; ao direito à
manifestação e ao protesto; direito à liberdade de ensino; etc.
11
– Para comprovar essa linha de raciocínio, basta ver a lista das
63 medidas específicas – divididas entre Projetos de Lei,
Propostas de Emenda Constitucional, Medidas Provisórias, etc – que
tramitam no Congresso e representam ataques diretos aos interesses
dos trabalhadores e à precária democracia brasileira. Um resumo vai
abaixo:
-
6 medidas de ataque ao Serviço Público, dentre elas: suspensão de concurso, congelamento de salários, e programa de demissão voluntária; dispensa por insuficiência de desempenho; retirada do direito de greve dos servidores; extinção do abono de permanência no serviço público; e outras.
-
27 medidas de ataque aos direitos dos trabalhadores, incluindo: terceirizações irrestritas; redução da idade para início da atividade laboral de 16 para 14 anos; instituição do Acordo Extrajudicial de trabalho, permitindo a negociação direta entre empregado e empregador com perda de direitos; impedimento do empregado demitido de reclamar na Justiça do Trabalho; suspensão de contrato de trabalho; prevalência do negociado sobre o legislado nas relações trabalhistas; estimulação das relações trabalhistas entre trabalhador e empregador sem a participação do sindicato; flexibilização da jornada, com trabalho intermitente por dia ou hora; redução da definição de trabalho escravo na lei; criação de uma categoria de trabalhador com menos direitos (Simples Trabalhista); suspensão de normas de segurança do trabalho; retirada do deslocamento do empregado até o local de trabalho como parte da jornada de trabalho; dentre outras.
-
7 medidas relacionadas ao Banco Central e às empresas públicas, com o fim da exclusividade da Petrobrás na exploração do pré-sal; independência total do BC; novo código de mineração; proibição da participação de dirigentes sindicais nos conselhos dos fundos de pensão públicos; etc.
-
6 Ataques aos direitos das mulheres e dos homossexuais, como a alteração (para pior) dos direitos ao aborto; Estatuto do Naciturno; Estatuto da Família; obrigatoriedade da comunicação, pelos estabelecimentos de saúde, de aborto ou de sua tentativa; permissão da “cura gay”; etc.
-
8 ataques aos direitos dos indígenas e trabalhadores do campo, dentre eles: retirada do Executivo da prerrogativa de realizar a demarcação das terras, tornando as populações indígenas ainda mais vulneráveis aos poderes regionais; inexigibilidade do cumprimento simultâneo dos requisitos de “utilização da terra” e de “eficiência na exploração” para comprovação da produtividade da propriedade rural; normas reguladoras do trabalho rural que retiram a participação dos trabalhadores no lucro ou resultados das empresas; definição como crime de responsabilidade de governador de Estado a recusa ao cumprimento de decisão judicial de reintegração de posse; regulamentação da compra de terra por estrangeiros; flexibilização da lei que obriga a informar os transgênicos no rótulo dos alimentos; permissão para a autorização da comercialização de agrotóxicos sem passar pelo Ministério da Saúde e do Meio Ambiente;
-
9 medidas que aumentam o aparato repressivo do Estado, dos proprietários e das Igrejas, dentre elas: concessão de acesso a todo e qualquer sistemas oficiais de informações sobre cidadãos para as polícias e órgãos de segurança; instituição de parceria público-privada na área de segurança pública; redução da maioridade penal; alteração da Constituição para que entidades de cunho religioso possam propor Ações de Constitucionalidade perante o STF; a Lei antiterrorismo; etc.
CAUSAS
ESTRUTURAIS DA CRISE POLÍTICA
1
– O que unifica todo esse conjunto de transformações? O
fato de que houve um esgotamento da forma como o país se adaptou à
ascensão do neoliberalismo no sistema capitalista mundial. A
inserção do Brasil nessa nova ordem se traduziu num processo de
REPRIMARIZAÇÃO ECONÔMICA, no qual a exportação das chamadas
commodities – como como minérios, aço, petróleo, gêneros
agrícolas, carnes e alimentos processados – ocupou o lugar central
da economia, substituindo os esforços de substituição de
importações que, até o final dos anos 1970, norteavam nossa
política industrial. À exceção de alguns poucos setores,
atualmente o Brasil não produz tecnologia e se insere de forma
subordinada nas cadeias industriais globais de incorporação de
valor.13
Há algumas exceções (como, por exemplo, o setores de petróleo,
aviões comerciais de pequeno e médio porte e alguns ramos da
indústria bélica); mas, no geral, nossa economia viveu um longo
ciclo de crescimento relativo das exportações de bens primários,
com a estagnação das exportações de bens manufaturados.
2
– Essa reprimarização esteve atrelada ao crescimento industrial
sem precedentes da China,14
que inflou artificialmente os preços desses primários.15
Foi graças ao crescimento artificial dos preços das commodities
que as exportações brasileiras geraram os excedentes que puderam
ser aplicados em políticas sociais, sem que isso implicasse em uma
ruptura com os interesses dos grupos dominantes.16
Também geraram excedentes que se distribuíram no conjunto da
economia, impulsionando setores geradores de empregos – como a
construção civil, que teve um grande crescimento nos últimos
anos.17
3
– A tendência de reprimarização da nossa economia não foi
combatida pelo Estado, mas sim estimulada por ele. Os
governos FHC, Lula e Dilma defenderam a criação de grandes
corporações industrial-financeiras de base nacional, capazes de
atuar com protagonismo do mercado mundial. Isso se deu principalmente
através das privatizações e da utilização ativa de bancos
públicos (como o BNDES e os Fundos de Pensão) na conformação
desses global players de base nacional. Ocorre que, como o
Brasil é um país deficiente em pesquisa e tecnologia, poupança
interna, especialização da mão-de-obra, etc, a saída adotada foi
apostar no fortalecimento dos setores em que as empresas brasileiras
possuíssem vantagens comparativas em relação às empresas
de outros países, e o setor primário é justamente um desses
setores, pelos seguintes motivos: é permitido o uso insustentável
da água (tanto no agronegócio quanto na mineração); liberação
para o plantio de transgênicos e uso indiscriminado de pesticidas e
agrotóxicos; desmatamento descontrolado; financiamento dos governos;
uso de trabalho escravo, com fiscalização precária por parte do
Estado; permissividade ao desrespeito às normas ambientais e de
segurança (vide o caso Samarco e a CSN); mão-de-obra barata;
energia elétrica subsidiada. Além disso, o Estado garante a infra
estrutura , com a construção de ferrovias, portos para a exportação
e até mesmo gigantescos canais para a transposição de água para o
uso em atividades siderúrgicas (como a transposição do Rio São
Francisco, que abastecerá indústrias do Ceará); etc.
4
– Há ainda vantagens comparativas em outros setores:
-
No setor de Telecomunicações, por exemplo, permite-se: formação de grandes monopólios, com a participação ativa do Estado; a cobrança das tarifas mais caras do mundo em celulares, Internet (isso também ocorre no setor Elétrico e combustíveis, com tarifas caríssimas); legislação ineficiente e permissiva com os abusos das companhias, permitindo o oferecimento de serviços péssimos.
-
Para as empreiteiras, permite-se: o uso do dinheiro público com pouquíssimo controle, o que resulta em obras caríssimas, que extrapolam múltiplas vezes qualquer previsão orçamentária; execução de projetos de urbanismo que destroem e reconstroem nossas cidades de forma cíclica, não respeitando os interesses das populações atingidas; execução e financiamento de projetos de utilizada duvidosa (incluindo aí os “Grandes Eventos”, como o Panamericano, a Copa e as Olimpíadas).
-
No setor de mídia, o Brasil é seguramente um dos países do mundo em que a propriedade dos meios de comunicação é mais concentrada, inclusive nos casos em que as empresas utilizam concessões do Estado (como rádios e canais de TV); sustentabilidade dos lucros das empresas por publicidade estatal; ausência de regulação no setor.
-
Na área da Educação Privada, o Brasil se tornou o principal mercado mundial, seja no Ensino Superior, na venda de material didático, em cursinhos preparatórios, etc. Nesse caso, garante-se o fluxo constante de verba pública para instituições privadas, com leis permissivas e a fiscalização deficiente.
-
Há ainda favorecimentos do Estado no setor de alimentos e no de planos de saúde privados.
5
– Finalmente, há o setor mais privilegiado de todos: o SETOR
FINANCEIRO, que é também o mais poderoso. Atualmente, ele não é
formado apenas pelas empresas mais imediatamente identificadas com o
mercado financeiro (tais como bancos comerciais, bancos de
investimento, seguradoras, etc), mas também por grandes corporações,
que investem seu capital em ações, associam-se a bancos e
diversificam seus investimentos em diferentes setores da economia.
Assim, para as empresas maiores, não há mais tanto sentido em
diferenciar as “empresas produtivas” das “empresas
financeiras”: corporações industriais, bancos e fundos de
investimentos se misturam no mercado financeiro, de modo a formar
grandes conglomerados de pura propriedade (isto é, de
capitais concentrados, que podem ser investidos em quaisquer setores,
seja no âmbito da produção ou no próprio mercado financeiro).
6
– O grupo Odebrecht, por exemplo, deixa de ser apenas uma
empreiteira, porque parte de seus capitais são investidos em muitos
outros setores: é dono, por exemplo, de parte das ações do
Aeroporto Galeão (recentemente privatizado por Dilma); tem ações
na Braskem (empresa do ramo de plásticos); é dono da Foz do Brasil
S.A. (empresa de fornecimento de água); tem seu próprio banco de
investimento (o Odebrecht Properties) que é co-proprietário do
Maracanã, investe em transportes, energia, logística, etc. O grupo
Vicunha, por exemplo, tem investimentos da mineração (Vale),
siderurgia (CSN), ferrovias, etc.
7
– Empresas, bancos e fundos de pensão públicos também se
misturam ao capital privado no mercado financeiro. O BNDES Par, por
exemplo (banco de participações público) tem ações em mais de 14
empresas, incluindo a Light, CSN, Vale, JBS, Oi, Embraer, Suzano,
Klabin, dentre outras. O Previ (Fundo de Pensão dos funcionários do
Banco do Brasil) investe na Ambev, Grupo Jereissati São Paulo, Sete
Brasil, Embraer, Oi, Invepar, Bradesco, Vale, Gerdau, etc. Quando
isso acontece, parte dos lucros dos grupos privados são distribuídos
também para os bancos e fundos públicos. Assim, no topo da pirâmide
do poder econômico, Estado e capital privado se misturam na busca
por lucros.
8
– Vale lembrar que, no caso dos Fundos de Pensão, estamos falando
de uma conjunção de interesses que envolve também os dirigentes
dos grandes sindicatos (particularmente a CUT), porque são as
centrais sindicais que indicam metade dos conselheiros desses fundos.
Atualmente, a CUT atua também no ramo dos “cursos de capacitação”
(recebendo verbas do Estado para a “preparação de mão-de-obra”
para o capital) e estuda o oferecimento de planos de previdência
próprios, o que resultará na transformação definitiva da Central
em um banco de investimentos.
9
– Para a sustentação dos lucros de todos esses setores,
amalgamados com os bancos no sistema financeiro, há ainda um modelo
de endividamento perpétuo do Estado, conhecido como Sistema da
Dívida. Ele se baseia na venda de títulos da dívida pública para
bancos e fundos de investimentos (inclusive estrangeiros) autorizados
pelo governo a participar dos leilões. Os juros pagos por esses
títulos (que depois são renegociados pelos compradores no mercado
financeiro) estão entre os maiores do mundo (são mais de 10 vezes
superiores, por exemplo, aos títulos da dívida pública dos EUA).
Como o pagamento desses títulos é sempre garantido pela Lei de
Responsabilidade Fiscal, quase a metade do orçamento do Estado é
consumido com esse sistema.
10
– Trata-se de um sistema que se retroalimenta, baseado no chamado
“Tripé Econômico”: metas de inflação, câmbio flutuante e
manutenção do superávit primário.18
A manutenção dos juros altos e do superávit faz com que o Brasil
constitua um polo central no financiamento do capital
financeiro nacional e estrangeiro, além de contribuir para o
financiamento da dívida pública dos EUA. Como os nossos títulos
pagam juros muito maiores do que os títulos que compramos, a
diferença resulta no aumento incessante da dívida, reduzindo os
recursos disponíveis para todas as outras áreas. Assim, por
exemplo, em 2014 o governo executou 45,11% do orçamento com os juros
e amortizações da dívida, mas apenas 0,1% com indústria; 0,28%
com Ciência e Tecnologia; 3,73% com Educação; 3,98% com Saúde;
0,02% com Saneamento; 0,56% com Transporte; 9,19% com transferências
a estados e municípios; etc.
11
– O encerramento do grande ciclo da Revolução Industrial chinesa,
associado aos efeitos da Crise Financeira de 2008, derrubaram os
preços das commodities, impedindo a continuidade da aplicação
desses excedentes na economia interna (seja em programas sociais ou
em outras atividades econômicas). Com isso, diminuíram
drasticamente as taxas de lucro obtidas pelo conjunto dos capitais
instalados no Brasil. Para compensar esse declínio, as empresas
obrigam o governo a adotar o chamado “Ajuste Fiscal” – que nada
mais é do que a diminuição dos gastos nos setores sociais, para o
incremento no Sistema da Dívida. É importante ter claro que o
governo não “corta gastos”: tudo o que se arrecada é gasto de
alguma forma, sempre. Quando se fala em “cortar gastos”, o que se
está falando é: “cortas gastos nos serviços públicos, salários
e programas sociais, para aumentar os repasses diretos e indiretos
para o capital”. O governo, recusando-se ou não a se render a essa
agenda (e ele dá mostras que está disposto a render-se) pode ser
chantageado de inúmeras maneiras, como por exemplo: I) redução da
produção das empresas, gerando desemprego e queda na arrecadação;
II) contenção de investimentos, com desvio de recursos para outras
áreas ou outros países; III) utilização dos deputados e senadores
comprados no Congresso, visando desestabilizar o Executivo;
IV) utilização da mídia contra o governo; etc.
12
– Como as políticas públicas e os próprios aparelhos de Estado
são privatizadas – isto é, controladas por grupos
econômicos com muito poder na sociedade civil e na sociedade
política – o Estado segue “por inércia” os interesses de
curto ou curtíssimo prazo do capital.
13
– Outra questão relevante é que o modelo baseado na
reprimarização econômica acaba por favorecer a polarização da
sociedade. Isso porque o modelo calcado na produção industrial de
bens de consumo e bens de produção favoreceu também a classe
operária e os sindicatos; mas o extrativismo, por sua vez, usa pouca
mão-de-obra e é muito concentrado em poucas mãos. O modelo atual
se sustentou por um tempo baseado na troca da reprimarização da
nossa economia por um aumento do consumo interno – o que só foi
possível com o oferecimento de mercadorias cada vez mais baratas e
descartáveis, geralmente produzidas em países onde as condições
de trabalho são extremamente degradantes e o regime político muito
autoritário. Chegando ao Brasil, essas mercadorias baratas puderam
ser adquiridas pelos trabalhadores, gerando uma ilusão de ascensão
social. Com o fim desse modelo, as empresas brasileiras, para se
manter no mercado, tentarão impor ao nosso país as mesmas condições
degradantes de trabalho existentes nos países do Leste.
14
– Em suma: o ciclo do modelo defendido pelo PT terminou, no sentido
que, mesmo que continue governando, não representará mais mudanças
positivas. Assim, continuando ou não o PT no governo, estamos
entrando em um novo ciclo, onde se tentará impor um novo modelo de
dominação e reprodução social. O trânsito a esse novo modelo
implica em conflito (social, político, econômico, cultural). Isso é
incontornável, mas o PT atua o tempo todo para “impedir” esse
conflito (que se dará não só contra a direita, mas possivelmente
também entre o governismo e sua própria base social de
sustentação). Na prática, o PT desarma a população para o
enfrentamento que virá de uma forma ou de outra. Nosso papel é se
aproximar dos setores que percebem a inevitabilidade desse conflito,
incorporando o PSOL nas lutas que virão.
15
– Por fim: temos que lembrar que, não importa o quão coerente
seja nossa análise, temos um problema objetivo que precisa
ser urgentemente debatido: não dispomos de meios concretos para
difundir na sociedade nossa visão de mundo, em comparação com os
meios disponíveis aos nossos inimigos de classe. De nada adianta uma
análise de conjuntura que seja compartilhada apenas por pequenos
grupos. Portanto, ao longo da leitura desse documento, é preciso
sempre ter em mente que o esforço de interpretar corretamente o
mundo não valerá nada se não dedicarmos um esforço ainda maior em
encontrar meios objetivos de difundir nossa própria
interpretação do momento histórico atual.
NOTAS
1
O acesso ampliado à Educação Superior e técnica, por exemplo,
foi suprido principalmente pela iniciativa privada, através de
programas como o FIES e o PRONATEC. Programas como o Bolsa-Família
e o Luz para Todos geram maior demanda de consumo, o que agrada ao
empresariado. O crescimento do salário-mínimo em níveis acima da
inflação, se não era desejável, também não chegava a ameaçar
os interesses da acumulação (até por se reverter em aumento da
demanda); o Minha Casa, Minha Vida (assim como as grandes obras e
grandes eventos) fazem a farra das empreiteiras; etc. Além disso,
não se deve esquecer que o próprio Banco Mundial, a partir dos
anos 1990, passou a defender políticas focalizadas e compensatórias
de “Combate à Pobreza”, que são praticamente as mesmas que o
governo PT adotou no Brasil – nesse caso, isso ocorre pelo
interesse político de manter condições de estabilidade
mínimas, evitando grandes rebeliões populares contra os ajustes
neoliberais. Vale frisar que essa agenda do BM foca o combate aos
efeitos da pobreza (e não às suas causas estruturais),
e é orientada por políticas de incremento do consumo (seja
de bens ou serviços) que devem ser oferecidos pela iniciativa
privada – exatamente o que vem sendo feito no Brasil. O BM também
não recomenda nenhuma ampliação de direitos universais (ao
contrário, recomenda a privatização dos mesmos onde for
possível).
2
Que um impeachment sem crime de responsabilidade seja
certamente um golpe consiste em um elemento inegável para todos que
tenham algo de realismo e sensatez na avaliação do momento.
3
Não pode ser descartada, nessa hipótese, que o PT consiga até
mesmo recompor parte de suas bases, uma vez que certamente um
governo pós-impeachment adotará toda sorte de medidas impopulares.
4
“Funcionou” entre aspas, porque trata-se de um funcionamento
contraditório e gerador de uma série de problemas, que incluem a
devastação ambiental (incluindo a crise hídrica, os
desmatamentos, etc); a militarização das periferias; a
reprimarização da economia; a continuidade das privatizações; a
política tecnicista e privatista na Educação; a manutenção do
sistema da dívida pública; etc.
5
A esse respeito, é preciso lembrar também que, a partir de 2008, o
país entrou em um novo ciclo grevista, que ainda está em
crescimento. Já vivemos a maior onda grevista da História do país,
segundo a série histórica do Dieese.
6
Obviamente, esse não é um processo que se iniciou em 2013. Já bem
antes da chegada ao poder, tanto o PT quanto a CUT já viviam um
processo de burocratização e afastamento das lutas. No caso da
CUT, esse processo levou a cúpula da Central a se tornar um player
importante na acumulação de capital no país, operando Fundos
de Pensão. Processo similar aconteceu no PT, à medida que o
partido crescia e ocupava governos importantes no país. A “Carta
aos Brasileiros” de 2002 sacramenta o PT como um partido da
ordem, desvinculado de uma perspectiva classista e socialista.
7
Para isso, certamente conspiraram as pressões internas do próprio
partido, devido não só a seus elementos mais corrompidos, mas
também à própria luta pela manutenção dos cargos e dos
privilégios do poder. Mas há também, no interior dos aparelhos de
Estado, a pressão de elementos sinceramente comprometidos com
ideais progressistas, que, apesar das concessões do governo à
direita, vislumbram um retrocesso ainda maior se o PT deixar o
poder.
8
Em que se pese os vetos da presidenta aos aspectos mais nefastos da
lei, fruto da pressão dos movimentos sociais (até mesmo dos mais
cooptados pelo governo, que precisaram responder às suas bases).
9
Neste caso, há de se convir que não foi uma mudança tão grande
assim, posto que figuras como Paloccci, Henrique Meirelles e Roberto
Rodrigues (dentre outros) também são reacionários e estiveram com
Lula desde 2003. A questão, neste caso, é que a conjuntura se
agudizou ainda mais.
10
A rejeição à Lula também é grande, mas é preciso considerar
que as pesquisas refletem um momento de ataques incessantes ao PT e
ao governo; até 2018, essa rejeição pode ser revertida,
dependendo do desempenho do governo Dilma. Nas últimas pesquisas,
Marina Silva aparece como o único nome capaz de vencer Lula
eleitoralmente. Os principais nomes do PSDB estão em franca
decadência (e não podemos esquecer que Aécio Neves e Geraldo
Alckmin chegaram a ser expulsos das manifestações convocadas por
eles próprios, pela mídia e pela direita em geral).
11
Quanto a isso, a direita manobra para usar o combate à corrupção
ao seu favor. Por um lado, ela restringe o foco das investigações
a uma única operação – a Lava-Jato – criando uma cortina de
fumaça em torno do escândalo da corrupção por sonegação de
impostos – investigado pela Operação Zelotes – que se estima
ser 10 vezes maior que a Lava-Jato, e afeta diretamente a burguesia
de maior prestígio nacional (como a siderúrgica Gerdau e as
Organizações Globo, que não por acaso abraçou o ativismo pelo
impeachment). Além disso, no interior da própria Lava-Jato, há o
esforço evidente de restringir as investigações ao PT,
obscurecendo a participação de outros partidos.
12
Não é necessário o uso das Forças Armadas para a execução de
um golpe. E isso vem sendo demonstrado pela História recente do
continente (Paraguai, Honduras, etc). Na verdade, em momentos de
polarização política (real e/ou estimulada) as Forças Armadas e
o Judiciário aparecem como portadores de uma mesma arma ideológica:
a aura de que são “neutros” diante da política, dos partidos,
do jogo eleitoral, etc. No caso atual do Brasil, a perspectiva é
pelo uso do Judiciário combinado pela mídia, visando a tomada
direta do poder pela direita política.
13
Isto é, quase tudo o que importamos é simplesmente consumido, e
apenas raramente utilizado para agregar valor às nossas próprias
exportações. É o contrário, por exemplo, do que acontece na
China, que importa nossos produtos primários para utilizá-los na
produção de manufaturados que, posteriormente, são exportados
para todo o mundo (especialmente os EUA). Ou seja, nossas riquezas
naturais são utilizadas para incorporar valor nas
exportações de outros países. Em outros casos – como acontece
principalmente no setor agropecuário e na mineração – nossas
terras, nosso ecossistema e nossas reservas de água são
literalmente espoliados por algumas poucas e enormes empresas, que
esgotam esses recursos para abocanhar fatias crescentes do mercado
mundial de gêneros (oferecendo, por exemplo, carne, minérios e
gêneros agrícolas para o mercado europeu, às custas da destruição
de nossos recursos naturais e do consequente comprometimento do
futuro das nossas próximas gerações).
14
A inserção da China no sistema capitalista mundial gerou
transformações inclusive nos EUA, que se tornou uma economia
extremamente financeirizada, com o trabalho concentrado no setor de
serviços. O grosso da produção industrial – base de toda
a economia capitalista – se transladou para o Leste, a partir de
uma instável associação entre a China e os EUA. Uma vez que os
EUA são o maior mercado consumidor dos produtos chineses (além de
se manter como a maior potência militar e tecnológica do planeta),
a China se vê na condição de manter o poder de compra do dólar e
financiar a dívida pública dos EUA, sob pena de comprometer o
crescimento de sua própria indústria. Esse equilíbrio é instável
e contraditório, e se reflete em disputas cada vez mais perigosas
entre as grandes potências pela repartição dos recursos naturais
mundiais e áreas de expansão de capital.
15
Para que se tenha uma ideia, entre 2000 e 2013 o preço dos produtos
primários no mercado internacional sofreu um aumento de 196%, ao
passo que a evolução dos preços dos produtos industrializados
exportados pelo Brasil aumentou apenas 77%. Essa variação de
preços, por si só, já seria suficiente para atrair para o setor
primário a maior parte dos capitais disponíveis para investimento;
mas, ao mesmo tempo, houve também a manutenção de um câmbio
sobrevalorizado e de altíssimas taxas de juros, o que fez com que o
investimento nos setores de indústria e tecnologia se tornasse
muito pouco atraente. A tabela abaixo mostra a variação da pauta
de exportações brasileira entre 2000 e 2013, em termos de valor
exportado.
16
Deve-se ressaltar que a reprimarização econômica é uma
característica de toda a América Latina na última década, seja
sob governos de esquerda, centro ou centro-esquerda (tais como a
Venezuela, a Argentina, a Bolívia, o Brasil, o Equador e o
Uruguai); de direita (como o México e a Colômbia); ou onde se
revezaram no poder governos de centro-esquerda e direita (como o
Chile, o Paraguai, Honduras e o Peru). A diferença fundamental,
nesses casos, é que em alguns países as políticas sociais tiveram
um alcance maior (como a Venezuela, a Bolívia e o Equador),
enquanto em outros esse avanço foi mais tímido e compactuado com
os grupos dominantes.
17
A esse respeito, vale lembrar que a conformação dos BRICS, de
maneira geral, não é suficiente para reverter a tendência geral
de reprimarização da nossa economia (ao contrário, eles foram
funcionais a essa tendência geral).
18
O superávit primário constitui em uma parcela do orçamento
público federal que, todos os anos, é “economizada” pelo
governo e investida em papeis estrangeiros (especialmente títulos
da dívida pública estadunidense, que pagam taxas de juros
baixíssimas). A meta de inflação é decidida pelo Banco Central,
que a utiliza como parâmetro para a variação das taxas de juros.
Finalmente, o câmbio flutuante significa que as taxas de câmbio
são controladas pelas flutuações do mercado, sem a possibilidade
do Estado privilegiar certos setores, em detrimento de outros (como,
por exemplo, foi feito durante a chamada “Era Vargas”, quando o
Estado utilizava as divisas geradas pela exportação de café para
favorecer a importação de máquinas e equipamentos pelo setor
industrial).
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